04 outubro, 2015





Quando arquivamos uma recordação ou a recuperamos, pomos grande parte do cérebro a trabalhar. Novas descobertas sobre o intrincado mecanismo da memória indicam que ela é mais frágil e manipulável do que pensávamos.
Em Março de 2009, um terrível acontecimento comoveu Portugal: um bebé de nove meses morreu de paragem cardiorrespiratória, em Aveiro, após ter passado mais de três horas fechado num carro ao sol, esquecido pelo pai. Se nunca se tinham interrogado antes, muitos devem ter pensado na altura: até onde pode chegar a capacidade humana de distracção? Será a memória tão pouco fiável?
 Antes de entrar na matéria propriamente dita, convém especificar que se agrupam, sob o termo demasiado genérico de “memória”, fenómenos muito diversos, que até possuem mecanismos de armazenamento distintos. “Se estivermos a falar do tempo de retenção, distinguimos entre a memória sensorial, que vai de milésimos de segundos a segundos; a de curto prazo, de segundos a minutos; e a de longo prazo, de dias a anos ou, por vezes, toda a vida”, pormenoriza o neurologista Francisco J. Rubia.
Além disso, as memórias também podem subdividir-se em declarativas ou explícitas (as que se referem a factos da nossa vida), e não-declarativas, que podem abranger desde como andar de bicicleta a reacções condicionadas, como a associação entre o ruído de pratos e a salivação antes de uma refeição. Não falamos, pois, com propriedade quando nos queixamos de ter “má memória”: podemos ser alunos ineptos e óptimos a saber onde deixámos exactamente, anteontem, o guarda-chuva.
Quanto mais a neurociência esquadrinha este campo mental, mais intricado parece. O momento decisivo na criação do nosso álbum de experiências ocorre quando uma recordação efémera passa a memória duradoura ou permanente. “Sabemos que é imprescindível o hipocampo, uma estrutura pertencente ao cérebro emocional, ou sistema límbico. Depois de os conteúdos estarem consolidados, essa área deixa de ser imprescindível. Nessa altura, o armazenamento decorre em diversas partes do córtex cerebral”, explica Rubia.
Um bailado bioquímico
Já se tornaram obsoletas metáforas como as do gravador ou do dísco rígido. De facto, o nosso cérebro arquiva a informação em diferentes pontos para depois os montar como se estivesse a fazer uma colagem, a comparação talvez mais adequada para descrever o processo: aqui, recupero o som da chuva que caía; ali, a cor dos brincos que ela levava; do outro lado, o sabor da bebida quente que tomámos... Um vertiginoso bailado bioquímico em que mais de cem proteínas se põem a dançar.
Essa complexa edificação memorística alicerça-se na ocorrência de determinadas transformações nos níveis profundos da nossa massa cinzenta. Tal como afirma David Linden, neurocientista norte-americano, no livro O Cérebro Acidental, os especialistas consideram que as experiências modificam as sinapses, isto é, os contactos químicos e eléctricos entre neurónios. Quando perdemos horas, por exemplo, a aprender a tocar flauta, o que estamos a fazer é reforçar os vínculos entre as células cerebrais envolvidas na aquisição dessa competência. Basta saber, então, que o glutamato e os iões de cálcio desempenham o papel de protagonistas.

Não há memórias indeléveis
Todavia, não são apenas as associações entre neurónios que influem; também as alterações na própria estrutura são importantes. Especialistas do Cold Spring Harbor Laboratory, em Nova Iorque, observaram durante 30 dias as dendrites (as terminações neuronais que recebem os impulsos nervosos) de ratos e comprovaram que 25 por cento das suas espinhas (pequenas saliências da membrana dendrítica) desapareciam e voltavam a formar-se. Seguramente, esta plasticidade é imprescindível para assentar as nossas memórias. Um fixador muito eficaz é o factor emotivo: todos os norte-americanos sabem onde se encontravam no 11 de Setembro; todos nós recordamos o dia em que nos deram uma má notícia familiar.
Antes, pensava-se que, uma vez consolidada, a memória a longo prazo era praticamente indelével, como o cimento quando solidifica. Contudo, os últimos estudos indicam que não devemos pôr as mãos no fogo em sua defesa. A suspeita surgiu durante os ensaios iniciados, há cerca de dez anos, por um jovem cientista, Karim Nader, que estudava a neurobiologia do medo em ratos de laboratório, em Nova Iorque. De acordo com a revolucionária hipótese que formulara, as memórias permanentes não só são maleáveis como, também, se reescrevem de cada vez que as recuperamos.
Esse facto explicaria a chamada “alucinação colectiva retrospectiva”, como a que tomou conta dos holandeses após o espectacular acidente do Boeing 747 da companhia israelita El-Al que colidiu, em 1992, contra um edifício de apartamentos em Amesterdão e causou a morte de 43 pessoas. Menos de um ano depois, 55% dos holandeses asseguravam ter visto na TV a forma como o avião chocou contra o prédio, fornecendo mesmo pormenores da trajectória. Contudo, o desastre nunca foi gravado em vídeo. As testemunhas tinham fabricado a história com base nas informações publicadas na imprensa e nas imagens posteriores.

Montar o quebra-cabeças
A verdade é que o principal problema da memória não é tanto a armazenagem como a recuperação das diferentes peças do ­puz­zle para serem colocadas no devido lugar e se poder, depois, atribuir-lhes uma coerência narrativa. “Não é como folhear um álbum de fotografias, nem sequer um álbum de fotografias que começam a perder intensidade. É mais parecido com algo equivalente a fazer uma busca na internet com o Google”, explica Linden. Refere-se à necessidade de introduzir a maior quantidade possível de elementos de busca.
Tal como indica o psicólogo Gary Marcus na sua recente obra Kluge: The Haphazard Construction of the Human Mind, rememorar é um mecanismo contextual; recorremos sempre a pistas. Dá como exemplo uma curiosa expe­riência realizada na década de 1970: um grupo de mergulhadores recordava melhor as palavras que tinha memorizado debaixo de água quando submergia do que em terra firme.
A recuperação das informações registadas nas nossas circunvoluções cerebrais poderia, pois, ser descrita como um processo dinâmico que se enriquece (e também se contamina) com as experiências do presente, o que faz sentido do ponto de vista evolutivo. Dá-se preferência à rapidez e à antecipação dos acontecimentos, valores supremos da sobrevivência para os nossos antepassados da savana. A contrapartida é a perda de precisão nos detalhes e erros de vulto como aquele em que incorreram os holandeses. “Efectivamente, o cérebro é feito de retalhos; não segue critérios de perfeição, mas adaptativos. Todavia, não se trata de um biscate, no sentido de ‘obra sem importância, pequeno trabalho’, segundo a definição do dicionário. Os resultados estão à vista”, argumenta Rubia.
Karim Nader chamou “reconsolidação” a essa inconsistência das memórias a longo prazo quando são repescadas pelo pensamento consciente. A sua intuição seria confirmada pelo psicólogo David Schacter, da Universidade de Harvard (Estados Unidos), que escrutinou, através de ressonâncias magnéticas, o cérebro de vários voluntários enquanto imaginavam algo e, depois, quando desenvolviam um esforço memorístico. Conclusão: eram activadas praticamente as mesmas áreas cerebrais. De cada vez que rememoramos, voltamos a cozinhar uma experiência e somamos ou subtraímos novos ingredientes, em especial quando a contamos a alguém. Não há duas evocações idênticas sobre a mesma vivência.
Schacter publicou, há alguns anos, um livro que obteve um êxito considerável, intitulado Os Sete Pecados da Memória, em que consignava os deslizes mais frequentes da traiçoeira faculdade mental. Um dos mais curiosos é a atribuição errónea, que pode levar-nos a crer que inventámos algo quando, na realidade, o copiámos de outros. Foi o que aconteceu a Geor­ge Harrison quando compôs My Sweet Lord (1970), una cópia involuntária, segundo o magistrado que instruiu o processo por plágio, do tema He’s So Fine (1964), dos Chiffons.
Outra especialista em extrair os pecados da memória humana é Elizabeth Loftus. A psicóloga demonstrou que as testemunhas de um caso de homicídio, por exemplo, se lhes forem feitas as perguntas oportunas, podem acreditar ter visto o que nunca aconteceu. Inserindo informações falsas entre outras verdadeiras, conseguiu fazer que vários voluntários estivessem convencidos de que tinham ficado perdidos, aos cinco anos, num centro comercial...
Comprimidos para más lembranças
No filme O Despertar da Mente (2004), Jim Carrey e Kate Winslet submetiam-se a uma terapia para apagar as memórias da sua relação, que estava em ponto morto. O argumento ter-se-á baseado nas investigações do neurocientista Karim Nader e na sua teoria da reconsolidação das memórias. Actual­mente, Nader estuda a possibilidade de curar pacientes que sofrem de stress pós-traumático, como vítimas de violações ou veteranos de guerra. A técnica que utiliza consiste em fazer o paciente reviver a má experiência para diminuir a sua intensidade com recurso a um beta-bloqueante, um fármaco originalmente prescrito para doenças cardíacas.
Outros especialistas exploram as possibilidades da amnésia selectiva. Joe Tsien, do Medical College da Geórgia, dedica-se a manipular a enzima CaMKII, responsável por garantir os sinais eléctricos entre neurónios, enquanto a equipa de Todd C. Sacktor, do SUNY Downstate Medical Center, em Nova Iorque, tenta o mesmo com a PKMzeta, outra enzima de características semelhantes.

SUPER 152 - Dezembro 2010




Docu

Sem comentários:

Enviar um comentário