MEMÓRIA Um disco rígido muito flexível
Quando arquivamos uma
recordação ou a recuperamos, pomos grande parte do cérebro a trabalhar. Novas
descobertas sobre o intrincado mecanismo da memória indicam que ela é mais
frágil e manipulável do que pensávamos.
Em Março de 2009, um
terrível acontecimento comoveu Portugal: um bebé de nove meses morreu de
paragem cardiorrespiratória, em Aveiro, após ter passado mais de três horas
fechado num carro ao sol, esquecido pelo pai. Se nunca se tinham interrogado
antes, muitos devem ter pensado na altura: até onde pode chegar a capacidade
humana de distracção? Será a memória tão pouco fiável?
Antes de entrar na
matéria propriamente dita, convém especificar que se agrupam, sob o termo
demasiado genérico de “memória”, fenómenos muito diversos, que até possuem
mecanismos de armazenamento distintos. “Se estivermos a falar do tempo de
retenção, distinguimos entre a memória sensorial, que vai de milésimos de
segundos a segundos; a de curto prazo, de segundos a minutos; e a de longo
prazo, de dias a anos ou, por vezes, toda a vida”, pormenoriza o neurologista Francisco
J. Rubia.
Além disso, as memórias
também podem subdividir-se em declarativas ou explícitas (as que se referem a
factos da nossa vida), e não-declarativas, que podem abranger desde como andar
de bicicleta a reacções condicionadas, como a associação entre o ruído de
pratos e a salivação antes de uma refeição. Não falamos, pois, com propriedade
quando nos queixamos de ter “má memória”: podemos ser alunos ineptos e óptimos
a saber onde deixámos exactamente, anteontem, o guarda-chuva.
Quanto mais a
neurociência esquadrinha este campo mental, mais intricado parece. O momento
decisivo na criação do nosso álbum de experiências ocorre quando uma recordação
efémera passa a memória duradoura ou permanente. “Sabemos que é imprescindível
o hipocampo, uma estrutura pertencente ao cérebro emocional, ou sistema
límbico. Depois de os conteúdos estarem consolidados, essa área deixa de ser
imprescindível. Nessa altura, o armazenamento decorre em diversas partes do
córtex cerebral”, explica Rubia.
Um bailado bioquímico
Já se tornaram obsoletas metáforas como as
do gravador ou do dísco rígido. De facto, o nosso cérebro arquiva a informação
em diferentes pontos para depois os montar como se estivesse a fazer uma
colagem, a comparação talvez mais adequada para descrever o processo: aqui,
recupero o som da chuva que caía; ali, a cor dos brincos que ela levava; do
outro lado, o sabor da bebida quente que tomámos... Um vertiginoso bailado
bioquímico em que mais de cem proteínas se põem a dançar.
Essa complexa edificação memorística
alicerça-se na ocorrência de determinadas transformações nos níveis profundos
da nossa massa cinzenta. Tal como afirma David Linden, neurocientista
norte-americano, no livro O Cérebro Acidental, os especialistas consideram que as
experiências modificam as sinapses, isto é, os contactos químicos e eléctricos
entre neurónios. Quando perdemos horas, por exemplo, a aprender a tocar flauta,
o que estamos a fazer é reforçar os vínculos entre as células cerebrais
envolvidas na aquisição dessa competência. Basta saber, então, que o glutamato
e os iões de cálcio desempenham o papel de protagonistas.
Não há memórias indeléveis
Todavia, não são apenas as associações
entre neurónios que influem; também as alterações na própria estrutura são
importantes. Especialistas do Cold Spring Harbor Laboratory, em Nova Iorque, observaram durante 30
dias as dendrites (as terminações neuronais que recebem os impulsos nervosos)
de ratos e comprovaram que 25 por cento das suas espinhas (pequenas saliências
da membrana dendrítica) desapareciam e voltavam a formar-se. Seguramente, esta
plasticidade é imprescindível para assentar as nossas memórias. Um fixador
muito eficaz é o factor emotivo: todos os norte-americanos sabem onde se
encontravam no 11 de Setembro; todos nós recordamos o dia em que nos deram uma
má notícia familiar.
Antes, pensava-se que, uma vez
consolidada, a memória a longo prazo era praticamente indelével, como o cimento
quando solidifica. Contudo, os últimos estudos indicam que não devemos pôr as
mãos no fogo em sua defesa. A suspeita surgiu durante os ensaios iniciados, há
cerca de dez anos, por um jovem cientista, Karim Nader, que estudava a
neurobiologia do medo em ratos de laboratório, em Nova Iorque. De acordo com a
revolucionária hipótese que formulara, as memórias permanentes não só são
maleáveis como, também, se reescrevem de cada vez que as recuperamos.
Esse facto explicaria a chamada
“alucinação colectiva retrospectiva”, como a que tomou conta dos holandeses
após o espectacular acidente do Boeing 747 da companhia israelita El-Al que colidiu,
em 1992, contra um edifício de apartamentos em Amesterdão e causou a morte de
43 pessoas. Menos de um ano depois, 55% dos holandeses asseguravam ter visto na
TV a forma como o avião chocou contra o prédio, fornecendo mesmo pormenores da
trajectória. Contudo, o desastre nunca foi gravado em vídeo. As testemunhas
tinham fabricado a história com base nas informações publicadas na imprensa e
nas imagens posteriores.
Montar o quebra-cabeças
A verdade é que o principal problema da
memória não é tanto a armazenagem como a recuperação das diferentes peças do puzzle
para serem colocadas no devido lugar e se poder, depois, atribuir-lhes uma
coerência narrativa. “Não é como folhear um álbum de fotografias, nem sequer um
álbum de fotografias que começam a perder intensidade. É mais parecido com algo
equivalente a fazer uma busca na internet com o Google”, explica Linden. Refere-se à necessidade
de introduzir a maior quantidade possível de elementos de busca.
Tal como indica o psicólogo Gary Marcus na
sua recente obra Kluge: The Haphazard Construction
of the Human Mind,
rememorar é um mecanismo contextual; recorremos sempre a pistas. Dá como
exemplo uma curiosa experiência realizada na década de 1970: um grupo de
mergulhadores recordava melhor as palavras que tinha memorizado debaixo de água
quando submergia do que em terra firme.
A recuperação das informações registadas
nas nossas circunvoluções cerebrais poderia, pois, ser descrita como um
processo dinâmico que se enriquece (e também se contamina) com as experiências
do presente, o que faz sentido do ponto de vista evolutivo. Dá-se preferência à
rapidez e à antecipação dos acontecimentos, valores supremos da sobrevivência
para os nossos antepassados da savana. A contrapartida é a perda de precisão
nos detalhes e erros de vulto como aquele em que incorreram os holandeses.
“Efectivamente, o cérebro é feito de retalhos; não segue critérios de
perfeição, mas adaptativos. Todavia, não se trata de um biscate, no sentido de
‘obra sem importância, pequeno trabalho’, segundo a definição do dicionário. Os
resultados estão à vista”, argumenta Rubia.
Karim Nader chamou “reconsolidação” a essa
inconsistência das memórias a longo prazo quando são repescadas pelo pensamento
consciente. A sua intuição seria confirmada pelo psicólogo David Schacter, da
Universidade de Harvard (Estados Unidos), que escrutinou, através de ressonâncias
magnéticas, o cérebro de vários voluntários enquanto imaginavam algo e, depois,
quando desenvolviam um esforço memorístico. Conclusão: eram activadas
praticamente as mesmas áreas cerebrais. De cada vez que rememoramos, voltamos a
cozinhar uma experiência e somamos ou subtraímos novos ingredientes, em
especial quando a contamos a alguém. Não há duas evocações idênticas sobre a
mesma vivência.
Schacter publicou, há alguns anos, um
livro que obteve um êxito considerável, intitulado Os Sete Pecados da Memória, em que consignava os deslizes mais
frequentes da traiçoeira faculdade mental. Um dos mais curiosos é a atribuição
errónea, que pode levar-nos a crer que inventámos algo quando, na realidade, o
copiámos de outros. Foi o que aconteceu a George Harrison quando compôs My Sweet Lord (1970), una cópia involuntária, segundo o
magistrado que instruiu o processo por plágio, do tema He’s So Fine (1964), dos Chiffons.
Outra especialista em extrair os pecados
da memória humana é Elizabeth Loftus. A psicóloga demonstrou que as testemunhas
de um caso de homicídio, por exemplo, se lhes forem feitas as perguntas
oportunas, podem acreditar ter visto o que nunca aconteceu. Inserindo
informações falsas entre outras verdadeiras, conseguiu fazer que vários voluntários
estivessem convencidos de que tinham ficado perdidos, aos cinco anos, num
centro comercial...
Comprimidos para más lembranças
No filme O Despertar da
Mente (2004),
Jim Carrey e Kate Winslet submetiam-se a uma terapia para apagar as memórias da
sua relação, que estava em ponto morto. O argumento ter-se-á baseado nas
investigações do neurocientista Karim Nader e na sua teoria da reconsolidação
das memórias. Actualmente, Nader estuda a possibilidade de curar pacientes que
sofrem de stress pós-traumático, como vítimas de violações ou veteranos de
guerra. A técnica que utiliza consiste em fazer o paciente reviver a má
experiência para diminuir a sua intensidade com recurso a um beta-bloqueante,
um fármaco originalmente prescrito para doenças cardíacas.
Outros especialistas exploram as
possibilidades da amnésia selectiva. Joe Tsien, do Medical College da Geórgia, dedica-se a manipular a enzima CaMKII,
responsável por garantir os sinais eléctricos entre neurónios, enquanto a
equipa de Todd C. Sacktor, do SUNY Downstate Medical Center, em Nova Iorque, tenta o mesmo com a PKMzeta, outra
enzima de características semelhantes.
SUPER 152 - Dezembro 2010
Docu
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